Nosso blog

A Superliga Europeia à luz do direito desportivo e do direito antitruste. Espetáculo midiático x mérito desportivo

26/10/2023

Por Pedro Cirne Lima

A tentativa frustrada de alguns dos maiores clubes europeus de futebol, amparados por patrocinadores milionários, de criar a Superliga Europeia é um assunto que, embora esteja atualmente fora dos holofotes, não foi definitivamente arquivado.

O tema segue sendo objeto de debates e tentativas de aperfeiçoamento legal e mercadológico por parte dos idealizadores do projeto, que constantemente vêm a público defendê-lo (alguns inclusive abertamente contrariando o mérito desportivo em prol de um planejamento “empresarial” [1]), o que vem levando a UEFA, segundo notícias recentes, a considerar alterações para o aperfeiçoamento das ligas continentais[2], numa clara reação a essas tentativas de ressureição da iniciativa.

Assunto que certamente voltará à baila em breve, do ponto de vista jurídico é bastante rico e interessante, demonstrando a transversalidade estabelecida entre o direito desportivo e o direito antitruste, ainda que esteja mais relacionado ao segundo.

De início, parece correto afirmar que os princípios constitucionais que orientam o direito antitruste no Brasil (liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa dos consumidores, proteção da propriedade privada e repressão ao abuso do poder econômico) sejam também adotados pelos países integrantes da Comunidade Europeia, assim como nos Estados Unidos, apesar da distinção existente entre o direito antitruste norte-americano e europeu, ambos fonte do brasileiro[3].

Já no campo do direito desportivo, tal como ocorre no Brasil (onde temos como marco legal o art. 217 da Constituição Federal, dispositivo que, entre outras determinações, em seu inciso I, assegura a autonomia de organização e funcionamento das entidades desportivas), nos  países integrantes da União Europeia (que expressamente incentiva o esporte, “com exclusão de qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros”[4]), onde são organizadas algumas das principais competições esportivas do mundo, essa autonomia é igualmente respeitada.

Em Portugal, por exemplo, o Decreto-Lei n.º 248-B/2008 de 31 de Dezembro de 2008, que “Estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva”, em seu art. 26,  2, determina que “As federações unidesportivas em que se disputem competições desportivas de natureza profissional integram uma liga profissional, de âmbito nacional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira.”

As federações delegam às ligas profissionais “as competências relativas às competições de natureza profissional”, cabendo-lhes exercer, nas competições profissionais “as competências da federação em matéria de organização, direcção, disciplina e arbitragem, nos termos da lei”.

Na Espanha, a Lei do Esporte (Ley 39/2022, de 30 de diciembre de 2022), de igual forma, estabelece, em seu art. 43, que “As federações desportivas espanholas são entidades privadas de natureza associativa, sem fins lucrativos e com personalidade jurídica própria, que têm por objeto a promoção, organização, regulação, desenvolvimento e prática, em todo o território do Estado, das modalidades e especialidades desportivas que constar em seus estatutos”.

No art. 56, fica estabelecido que, nas federações onde haja competições oficiais de caráter profissional em âmbito nacional se organizarão ligas, “que terão personalidade jurídica, natureza associativa e gozarão de autonomia para sua organização interna e funcionamento em relação à federação esportiva espanhola da qual façam parte”.

Como se vê, no âmbito europeu, as ligas nacionais funcionam por delegação das federações, entidades com autonomia para organizar as competições profissionais de seus respectivos esportes, entre os quais o mais importante, do ponto de vista de número de torcedores, valores envolvidos e cobertura de mídia e, sem dúvida nenhuma o futebol.

E um dos pilares básicos que orienta a organização das competições desportivas por essas entidades, especificamente tratando do futebol europeu e sul-americano, é o mérito desportivo, qual seja, o desempenho do clube ou entidade nas competições de uma temporada será o balizador de sua condição nas competições da temporada seguinte. O mérito desprovido estabelece a movimentação dos clubes e entidades naquilo o que chamamos de ascenso e descenso. Os melhores colocados são premiados com a promoção à divisão superior (ou a competições internacionais, caso já estejam na divisão principal) e os piores são “rebaixados” à divisão inferior.

Nos universos europeu e latino-americano, o mérito esportivo é reconhecidamente um dos fundamentos que confere mais emoção ao esporte, movendo a enorme massa de torcedores apaixonados por seus times (os consumidores do produto futebol). É o que permite ao torcedor do time da terceira divisão de um país ver seu time campeão da principal divisão nacional em pouco tempo, desde que galgue posições através de sucessivas boas temporadas. É exatamente este o caso do Leicester, que em oito anos foi da terceira divisão inglesa ao título da Premiere League[5].

O mérito esportivo está, inclusive, previsto no art. 165, 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia que elenca, entre os objetivos da União ao promover os “aspetos europeus do desporto”, o de “desenvolver a dimensão europeia do desporto, promovendo a equidade e a abertura nas competições desportivas”[6].

A partir desses breve exame de princípios e fundamentos, passemos a tentar enquadra-los no recente caso do “naufrágio” da Superliga Europeia, tentativa frustrada (ao menos por hora) de implementação de uma liga com contornos tipicamente baseados na estrutura esportiva  norte-americana, organizada em ligas independentes (NFL, NHL, NBA e MLS), que tem como pilares fundamentais o entretenimento e o faturamento, em uma cultura distinta, a europeia que, se também tem o esporte (principalmente o futebol) organizado em ligas nacionais independentes e busca o espetáculo e o faturamento, pois o esporte é inegavelmente um negócio de dimensões mundiais, traz como pilar do sistema de competições o mérito esportivo.

A reclamação cada vez mais ouvida no âmbito dos grandes clubes do futebol  europeu,  e que motivou a tentativa de criação da Superliga, é a da falta de liberdade dos clubes (olha a livre iniciativa aí) que, apesar de terem suas ligas devidamente organizadas em seus respectivos territórios, se veem “amarrados” em nível continental pela UEFA, que organiza as competições continentais (seria um atentado à livre concorrência??), recebendo patrocínios milionários, comandando o calendário e, a partir daí, tendo um poder de decisão muito grande na “vida” dos clubes.

Alegadamente, a intenção dos organizadores do novo torneio continental seria o entretenimento dos torcedores (defesa dos consumidores), ao lado, evidentemente, de um maior faturamento, despejado diretamente pelos patrocinadores (entre os quais um grande banco americano) em seus bolsos (proteção da propriedade privada), sem a intervenção da entidade de administração do esporte.

Porém, curiosamente, foram os consumidores, no caso, os torcedores de quase todos os grandes clubes envolvidos na natimorta liga, especialmente os ingleses, que deram à UEFA a vitória nesta briga, antes mesmo de sua chegada aos órgãos de controle ou mesmo aos tribunais: literalmente foram às ruas aos milhares, protestar contra a criação da Superliga Europeia, exatamente porque, ao investir em uma liga “fechada”, formada por 12 clubes fundadores, com lugares cativos na competição, que convidariam os demais participantes, a organização ignorava o mérito desportivo, mola mestra das competições na Europa (assim como na América do Sul), sistema que permite o acesso e o descenso dos clubes, bem como sua participação nos certames continentais, movimentando centenas de agremiações distribuídas em várias divisões nacionais.

Segundo esses torcedores, a Superliga privilegiaria o poder econômico, formando um grupo de clubes ricos, em detrimento do mérito desportivo, pilar que mantem hígido o futebol associado como uma grande “teia” mundial, conectando as federações nacionais às confederações continentais e à FIFA. A Superliga, segundo eles, relegaria todos os demais clubes ao ostracismo em termos continentais ou, no máximo, a pretendentes a um convite dos “poderosos”.

Seria, segundo essa mesma linha de pensamento, com a qual estamos de acordo, claramente um cartel de clubes, atentando então, em uma só tacada, sob o prisma do direito antitruste, contra a livre concorrência, à repressão ao poder econômico e, consequentemente, contra os consumidores, razão pela qual não deve ser implementada.

Resta saber se os apaixonados torcedores resistirão às suas convicções, fazendo com que os clubes e patrocinadores envolvidos no projeto da Superliga revejam o modelo proposto, contemplando o mérito esportivo (como cogita a UEFA, segundo a notícia transcrita acima), ou se a força política desses gigantes do futebol e a força  econômica das empresas que pretendem patrocinar a iniciativa vai preponderar, com a criação de uma liga fechada.


[1] Ex-presidente da Juventus defende Superliga Europeia: ‘Monopólio da Uefa deve ser quebrado’.

Andrea Agnelli cita motivos para criação do torneio alternativo: dar estabilidade financeira aos clubes e diminuir a previsibilidade das competições continentais

Lucas Pessoa -26/02/2023 – 12:24

Um dos líderes do projeto da Superliga Europeia, Andrea Agnelli voltou a defender a criação do torneio alternativo. Em entrevista ao jornal holandês ‘The Telegraaf’, o ex-presidente da Juventus criticou o ‘monopólio da Uefa’ e garantiu que a liga daria uma maior estabilidade financeira para clubes europeus.

– O monopólio da Uefa deve ser quebrado para dar aos clubes um futuro financeiramente estável. Um futuro em que os clubes não sejam prejudicados se não conseguirem se classificar uma vez para as competições europeias. Isso é um problema para qualquer clube. Com tanta incerteza, não é possível como clube tomar decisões sustentáveis ​​e sólidas a longo prazo. É por isso que sou a favor de um sistema de ligas no futebol europeu de topo, com mais oportunidades financeiras e desportivas para cada clube – explicou Agnelli. (https://www.lance.com.br/lancebiz/ex-presidente-da-juventus-defende-superliga-europeia-monopolio-da-uefa-deve-ser-quebrado.html)

[2] Uefa discute mudança de formato do futebol europeu com criação da Superliga Europeia

Decisão sobre novo campeonato deve acontecer na próxima reunião do Comitê Executivo da entidade

Da redação RJ do Lance! – Publicada em 03/10/2023 – 12:15- Nyon (SUI)

A Uefa e a Associação Europeia de Clubes realizaram uma reunião na segunda-feira para tratar sobre algumas possíveis mudanças no futebol europeu. Entre as ideias, ganhou força a criação de um novo formato de disputa de ligas entre as principais equipes do continente.

Segundo o jornal espanhol “Marca”, a intenção das entidades parceiras é criar três divisões com 18 clubes cada: Superliga (principal), Liga Europeia (secundária) e Liga de Aspirantes (terciária). As competições seriam jogadas em formato de liga, com 34 jogos por equipe.

As regras também implicariam o rebaixamento de dois clubes da Superliga para a Liga Europeia, bem como dois clubes subindo. Entre a segunda e a terceira divisão, o trânsito seria de oito equipes, com quatro subindo e quatro descendo para disputar a Liga de Aspirantes. O formato, porém, implicaria em um calendário inchado, com mais de 80 jogos por temporada para os times do Velho Continente.

Ainda não foi decidido quais clubes jogariam as competições, mas haverá a discussão sobre o tema na próxima reunião do Comitê Executivo da Uefa. Vale lembrar também que no começo deste ano, 12 clubes (Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, Atlético de Madrid, Barcelona, Real Madrid, Inter de Milão, Juventus e Milan), em parceria com a empresa A22, tentaram implementar a criação de um campeonato com o nome de Superliga Europeia, mas não foram bem-sucedidos no planejamento.( https://www.lance.com.br/futebol-internacional/uefa-discute-mudanca-de-formato-do-futebol-europeu-com-criacao-da-superliga-europeia.html)

[3] A respeito da distinção entre essas duas vertentes, Andressa Lin Fidelis ao discorrer sobre a atuação do CADE na atual investigação sobre o mecanismo de busca do Google: “Já de um ponto de vista teórico, o resultado final das investigações sobre o abuso de posição dominante do Google dependerá do significado que o CADE dará no caso concreto à busca da eficiência e a maximização do bem-estar do consumidor. Em suma, o CADE se depara com ao menos duas tendências de análise: priorizar a liberdade de iniciativa e inovação da firma dominante, nos moldes norte-americanos; ou priorizar a proteção de novos e potenciais concorrentes e garantir o real poder de escolha do consumidor, nos moldes europeus.” (Fidelis, Andressa Lin, “Entre o “laissez-faire” americano e o “intervencionismo” europeu: para qual direção aponta a atual investigação do CADE sobre o mecanismo de busca do Google .”, (RDC, Vol. 3, nº 2. Novembro 2015, pp. 65-86, in https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/download/201/110/876)

[4] Artigo 165.o (ex-artigo 149.o TCE)

  1. Para contribuir para a realização dos objetivos a que se refere o presente artigo: — o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, e após consulta do Comité Económico e Social e do Comité das Regiões, adotam ações de incentivo, com exclusão de qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros, C 202/120 Jornal Oficial da União Europeia 7.6.2016 PT — o Conselho adota, sob proposta da Comissão, recomendações.

[5] https://blogs.oglobo.globo.com/planeta-que-rola/post/leicester-city-da-terceira-divisao-para-o-titulo-ingles-em-oito-anos.html

[6] TÍTULO XII A EDUCAÇÃO, A FORMAÇÃO PROFISSIONAL, JUVENTUDE E DESPORTO

Artigo 165.o (ex-artigo 149.o TCE)

  1. A União contribuirá para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, incentivando a cooperação entre Estados-Membros e, se necessário, apoiando e completando a sua ação, respeitando integralmente a responsabilidade dos Estados-Membros pelo conteúdo do ensino e pela organização do sistema educativo, bem como a sua diversidade cultural e linguística. A União contribui para a promoção dos aspetos europeus do desporto, tendo simultaneamente em conta as suas especificidades, as suas estruturas baseadas no voluntariado e a sua função social e educativa.
  2. A ação da União tem por objetivo:

— desenvolver a dimensão europeia do desporto, promovendo a equidade e a abertura nas competições desportivas e a cooperação entre os organismos responsáveis pelo desporto, bem como protegendo a integridade física e moral dos desportistas, nomeadamente dos mais jovens de entre eles.

Gostou? Compartilhe com os amigos