Por Andrei Kampff
A punição ao Cerro Porteño pelo crime contra o jovem Luighi veio dentro daquilo que quem acompanha decisões da entidade esperava: multa, portões fechados e o compromisso de uma campanha do clube contra o racismo. Sabe por que o Cerro não perdeu pontos? Porque ninguém – nem clubes, nem Conmebol, nem torcidas – nunca quis de fato incluir nos códigos desportivos a perda de pontos por atos discriminatórios.
Entenda: para que a pena seja aplicada, é necessário que haja uma previsão legal, garantindo a segurança jurídica. No direito, isso é conhecido como nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem lei). É o famoso princípio da legalidade, previsto inclusive no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal do Brasil, que diz: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Portanto, o que precisa ser discutido novamente é: vamos incluir nos regulamentos do futebol a perda de pontos por atos discriminatórios?
Em 2022, quando a CBF propôs a inclusão da perda de pontos, ou punição esportiva, por atos discriminatórios no Regulamento Geral de Competições, o GE realizou uma pesquisa com os clubes das séries A e B do Brasileirão. Apenas seis se manifestaram a favor, sete foram contra, e a maioria absoluta ficou em cima do muro.
O debate não avançou.
Além disso, no ano passado, o presidente da FIFA, Gianni Infantino – após casos de racismo contra Vinicius Jr. – determinou que as federações internacionais incluíssem a perda de pontos nos códigos esportivos para atos discriminatórios.
Quem cumpriu? Conmebol? CBF? Quem cobrou?
O que dizem os regulamentos da CBF e da Conmebol?
No Brasil, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) traz o artigo 243-G, muito utilizado na Justiça Desportiva em casos de atos discriminatórios. Ele estabelece punição para quem “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A suspensão varia de cinco a dez partidas para jogadores e treinadores.
O parágrafo 2º do mesmo artigo afirma que, “caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente”.
Até agora, entre os grandes times do futebol brasileiro, apenas o Grêmio foi punido esportivamente por atos discriminatórios, em 2005, no caso envolvendo o goleiro Aranha, do Santos.
No ano passado, segundo dados do Observatório do Racismo no Futebol Brasileiro, foram registrados mais de 100 casos. Este ano, já são 15 monitorados pelo Observatório!
Pressionada por episódios constantes de preconceito em jogos da Libertadores e da Sul-Americana, a Conmebol alterou seu Código Disciplinar em 2022, tornando mais severas as sanções contra atos de discriminação em todas as competições da entidade “por motivação de cor de pele, raça, sexo ou orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem”.
O artigo 17 ficou assim:
1. Qualquer jogador ou oficial que insultar ou atentar contra a dignidade humana de outra pessoa ou grupo de pessoas, por qualquer meio, por motivos de cor de pele, raça, sexo ou orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem, será suspenso por um mínimo de cinco partidas ou por um período de tempo mínimo de dois meses.
2. Qualquer Associação Membro ou clube cujos apoiadores insultem ou ofendam a dignidade humana de outra pessoa ou grupo de pessoas, por qualquer meio, por motivos de cor de pele, raça, sexo ou orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem, estará sujeito a uma multa de no mínimo CEM MIL DÓLARES AMERICANOS (USD 100.000). Além disso, o Órgão Judicial competente também poderá impor a sanção de jogar uma ou mais partidas com portões fechados ou o fechamento parcial do estádio.
O Cerro foi punido com multa, portões fechados e uma campanha contra o racismo!
E afirmo aqui: a punição ao Cerro só foi o que foi graças à coragem de Luighi, que contrariou a lógica das posturas dos atletas vítimas de preconceito e teve a maturidade para desabafar e falar sobre o que precisava ser dito. Gerou irritação, debate e tem provocado avanços.
A presidente Leila tem reiterado que é preciso punir com mais rigor. Vários clubes, inclusive o Corinthians, também se solidarizaram com Luighi. Antes da decisão contra o Palmeiras, o São Paulo exibiu uma camisa com a frase “-3 pontos”. No clássico Grenal, o técnico Roger comandou o Internacional com uma camisa contra o racismo.
Como uma vez me disse o amigo Marcelo Carvalho, do Observatório: “Quanto mais se fala, mais se avança. Mesmo que seja devagarzinho”.
Será que agora os clubes estão prontos para assinar um documento que inclua a pena esportiva para atos discriminatórios?
Você, como torcedor, que levantou a voz contra o time paraguaio pedindo uma punição justa, vai ajudar nesse compromisso?
Defendo a punição esportiva há um bom tempo. Essa cultura de violência reiterada contra direitos humanos não combina com o esporte. O esporte abraça, não afasta. Ele agrega, não segrega.
O esporte não se afasta dos direitos humanos.
O esporte não se afasta do direito, e o direito tem como pilar da construção jurídica a proteção dos direitos humanos.
Por isso, com o tempo, os regulamentos esportivos têm sido aperfeiçoados para facilitar o caminho do combate ao preconceito.
O artigo 3 do Estatuto da FIFA, a “Constituição do futebol”, afirma que a “FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos”.
Em 2019, o Código Disciplinar da FIFA se posicionou de maneira firme, apresentando caminhos para punições à violação de direitos humanos, como injúria racial e homofobia, com penas duras.
O artigo 13, em tradução livre, diz:
“13 Discriminação – Qualquer pessoa que ofenda a dignidade ou integridade de um país, uma pessoa ou grupo de pessoas por meio de palavras ou ações desdenhosas, discriminatórias ou depreciativas (por qualquer meio) em razão da raça, cor da pele, etnia, origem nacional ou social, gênero, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição ou motivo, será punida com uma suspensão de pelo menos dez jogos ou um período específico, ou qualquer outra medida disciplinar apropriada.”
Lembrando que todos que fazem parte da cadeia associativa do futebol aderem às regras da FIFA.
Ou seja, os próprios regulamentos do futebol já reforçam compromissos necessários com os direitos humanos, aplicando punições graves contra o preconceito.
A verdade é que o direito vai muito além daquilo que está tipificado de maneira geral e abstrata. No caso concreto, princípios, direitos humanos e peculiaridades precisam ser analisados.
Todos comprometidos?
Agora, uma previsão específica nos códigos – da Conmebol e da CBF – facilitaria o caminho para o julgador e evitaria frustrações como a que se teve com a decisão sobre o caso de Luighi.
Quando a Conmebol implantou o protocolo de três passos, que prevê o gesto de “braços cruzados” para denunciar racismo durante as partidas, ou quando Infantino falou sobre a perda de pontos, escrevi: “Medida só pode ser aplaudida depois de colocada em prática”.
O esporte não se separa do direito, nem da proteção dos direitos humanos. Existe caminho para punir o preconceito. Além de campanhas que conscientizam, é preciso punir. Mas, para isso, clubes, imprensa, torcida e entidades esportivas precisam se comprometer com o combate à discriminação.
Incluir a pena esportiva nos regulamentos seria um compromisso real.
Topa?
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