Por Andrei Kampff
O que é bom precisa continuar. Apostando nesta receita clássica, a Prime Video colocou nesta semana o Jogo de Corrupção, uma continuação de El Presidente. Apesar de não ter um compromisso cartorial com a história, a série já é uma aula para a gestão do esporte.
Nesta nova aventura pelo mundo do futebol como negócio, a série tem como protagonista João Havelange, o brasileiro que entendeu como uma paixão popular poderia se tornar também uma fábrica de dinheiro. Mas o caminho tomado abriu espaço para a corrupção privada e para uma série de crimes dentro do ambiente esportivo. Uma realidade que acabou gerando o maior escândalo da história do futebol, o Fifagate.
Relembre o caso
Fazer o certo é sempre uma escolha. Teria que ser um dever moral de todo dirigente do esporte, mas a história tem mostrado que passou a ser também uma obrigação legal (ainda bem).
A investigação das autoridades suíças em conjunto com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos provocou um tsunami no mundo do futebol , tanto que ganhou o nome de Fifagate . No dia 27 de maio de 2015, vários dirigentes da entidade foram presos acusados de corrupção privada e desvio de dinheiro, entre eles o ex-presidente da CBF José Maria Marin.
As investigações também levantaram irregularidades da gestão do então presidente da Fifa, Joseph Blatter. Em uma das denúncias, havia um pagamento suspeito ao então presidente da UEFA, o ex-craque francês Michel Platini.
Um pouco depois da prisão dos dirigentes, as autoridades da FIFA iniciaram um processo disciplinar em relação a um complemento salarial de 2 milhões de francos suíços que Platini havia recebido em 2011, no contexto de um contrato verbal entre ele e o presidente da FIFA, para atividades como consultor entre 1998 e 2002.
O caso foi analisado primeiro pelo Comitê de Ética.
Inicialmente, ele recebeu uma suspensão de oito anos de todas as atividades relacionadas ao futebol nos níveis nacional e internacional e foi multado em 80.000 francos suíços pela câmara adjudicatória do Comitê de Ética da FIFA.
A sanção foi confirmada pelo Comitê de Apelação da FIFA, mas a pena foi reduzida para seis anos de suspensão.
Platini não desistiu.
Ele recorreu dessa decisão para o Tribunal de Arbitragem do Esporte (TAS). Ele alegou, em particular, que os artigos do Código de Ética da FIFA invocados não eram aplicáveis no momento dos atos relevantes e que a sanção parecia excessiva. O TAS rejeitou esta denúncia, mas reduziu o período de suspensão de seis anos para quatro e a multa de 80.000 para 60.000 mil francos suíços.
Seguindo a cadeia jurídica do esporte, ainda cabia recurso civil contra a decisão do TAS perante o Tribunal Federal Suíço, que confirmou a decisão, considerando que tendo em vista a idade do requerente (61 em 2015), a duração da suspensão não parecia excessiva.
O TEDH foi na mesma linha e confirmou esse entendimento. Depois de a bola rolar por um bom tempo, Michel Platini não conseguiu virar esse jogo.
O movimento esportivo fez sua parte e puniu com rigor Platini e também Blatter, afastando os dois da cadeia associativa do futebol.
A importância da autorregulação
O esporte está se protegendo. A autorregulação tem papel decisivo nesse processo.
Com os escândalos nas grandes entidades esportivas, como o Fifagate em 2015, a pressão do movimento esportivo e da opinião pública por transparência e responsabilidade nas entidades esportivas aumentou.
Sentindo a pressão, vendo importantes dirigentes denunciados por crimes e entendendo a importância de uma proteção interna, as entidades passa a investir em governança, transparência, profissionalismo e compliance.
Os Estatutos foram reformados. Comitês de Ética ganharam autonomia. Atletas passaram a ter mais representatividade. Ouvidoria independente. Além disso, foram criados regulamentos internos importantes.
O fair play financeiro é um exemplo. O Licenciamento de Clubes da Fifa, outro. Dois regulamentos jurídicos desportivos que buscam dar credibilidade, integridade, transparência desportiva e financeira.
Assim como a FIFA e a Conmebol, a CBF também adotou o Licenciamento de Clubes e prometeu – pra quando? – um Fair Play Financeiro Made in Brasil. O CNRD também é uma esperança.
Autorregulação esportiva, vigilância do Ministério Público que passou a denunciar gestão temerária (olha o caso de Nuzman) e até o Congresso Nacional resolveu ajudar.
Depois de 4 anos estacionado no Senado, o PLS 68/17 – que, além de unificar a legislação esportiva, tipifica o crime de corrupção privada – voltou a avançar no Congresso. Rebatizado de PL 1153/19, está no Senado e de lá deve ir para sanção presidencial.
O fato é que esse caminho que o esporte está tomando – inserindo regras que auxiliam na gestão responsável e no combate aos absurdos do negócio – transformará não só a administração esportiva, mas também o próprio direito.
No esporte não há mais espaço para amadores, irresponsáveis e/ou criminosos. E o caminho mostrado na série em cartaz no Prime Video já anda mais complicado.
Série é entretenimento, não resgate histórico
Se em El Presidente a série contou sobre o maior escândalo do futebol – o Fifagate – de maneira divertida e impactante, dessa vez a ideia é seguir a mesma receita para contar a história de como um brasileiro dominou e transformou o mundo do futebol.
Havelange sempre foi uma figura polêmica. Mas é inegável o papel que ele teve para transformar o futebol na indústria econômica que é hoje. O dirigente teve um papel fundamental na ascensão da CBF, da seleção brasileira e da FIFA no mundo.
A trajetória do dirigente envolve todos os elementos para uma grande história: vida conturbada, emoção do esporte, reviravoltas, estratégias, corrupção e suspense.
Como escrevi ali em cima, a série avisa desde o início que não tem um compromisso histórico. Exageros e alterações para deixar o “produto” mais atraente estão no pacote. Ao assistir é preciso ser leve, relevando erros de roteiro e a artificialidade do jogo em nome do “entretenimento”.
Por exemplo, não desligue o aplicativo quando Castor fala que a escola de samba dele é a Imperatriz Leopoldinense (em nome da história, era a Mocidade Independente). .
A cena da reunião entre Havelange, o bicheiro Castor de Andrade (Eduardo Moscovis, gigante) e um general da ditadura brasileira para confirmar a escolha de João Saldanha como técnico da seleção – chutando autonomia esportiva para o espaço – é antológica. Mas tem muito mais.
Entenda, a série é entretenimento na veia, com resgates históricos importantes, fotografia muito bem feita, trilha sonora caprichada e grandes atuações. Uma diversão, tendo o bônus de ser também uma aula para os dirigentes esportivos.